Fome de justiça

27 de julho de 2012
Luciana observa a primeira doação do dia: cenouras fora dos padrões de comercialização que seriam jogadas no lixo

Fundadora da ONG Banco de Alimentos, Luciana Chinaglia Quintão acredita que pequenas atitudes, como evitar o desperdício de comida, ajudam a combater um dos grandes problemas sociais do planeta: a fome

Com um sorriso no rosto, ela observa caixas fartas de mangas, escarolas e cenouras ao seu redor. Em seus braços, repousavam dois ramos de salsinha. “Isso aqui não é uma maravilha? E pensar que todos esses alimentos vivos e robustos teriam como destino o lixo…”, fala ao receber a primeira doação do dia, que será encaminhada a alguma das instituições assistenciais que a ONG atende em São Paulo.

Mãe de três filhos, libriana perfeccionista e eterna justiceira, Luciana Chinaglia Quintão é fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos, em São Paulo. Essa organização é responsável pela distribuição de alimentos doados por supermercados, hortifrútis, agricultores e empresas alimentícias paulistas para matar a fome de mais de 22 mil crianças, adolescentes e adultos em situação de exclusão social.

Embora seu trabalho hoje esteja mais ligado à administração, sempre que consegue uma brecha na tortuosa agenda, essa carioca de 49 anos acompanha de perto o dia a dia da organização. Sua equipe de rua é composta de seis homens (com três furgões) que saem diariamente para recolher sacos de frutas, verduras e legumes que estão bons para o consumo, mas não servem para a comercialização por estarem fora dos padrões estabelecidos pela legislação para a venda. Entram na lista alimentos de tamanhos diferentes, com deformações visuais, muito maduros, com prazo de validade prestes a vencer, entre outras circunstâncias.

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Bolinhos preparados com as beterrabas doadas fizeram parte do almoço do dia na Casa da Criança Paulo de Tarso, em São Paulo

Essas “sobras”, doadas à ONG, ajudam a complementar aproximadamente 260 mil refeições mensais de 51 entidades filantrópicas na capital paulista. “Uma alimentação saudável faz toda a diferença na formação física e psíquica de qualquer pessoa. Por isso, o alimento é nosso primeiro remédio e deveria ser um direito de todos”, afirma Luciana.

Para ela, o prato vazio de muitas famílias brasileiras certamente é reflexo da pobreza. “Só come quem tem dinheiro. Quem não tem depende da ajuda de outros, como ONGs, escolas e programas de apoio alimentar”, explica. Esse tipo de assistência social, porém, resolve apenas parte do problema. A empresária lembra que, além da distribuição de renda desigual, outro entrave é o desperdício.

No Brasil, segundo dados reunidos pela ONG, 64% da produção agrícola é desperdiçada ao longo da cadeia produtiva: 20% na colheita, 8% no transporte, 15% na indústria de processamento, 1% no varejo e 20% no processo culinário e na forma como o consumidor se alimenta. “São 39 milhões de quilos de alimentos jogados no lixo todos os dias, o que daria para alimentar 19 milhões de pessoas”, lamenta.

HORA DE AGIR
Caçula de uma família de classe média alta, Luciana nasceu em Ipanema e cresceu em meio à bela paisagem da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. Mas essa natureza deslumbrante convivia com cenas de um tremendo descaso social e isso a incomodava muito. “Eu precisava entender os motivos da desigualdade. De um lado a fartura e de outro a escassez, como se fossem dois Brasis”, lembra ela. “Nos tempos da faculdade [ela é formada em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)], entre 1980 e 1984, ninguém falava de índices de pobreza, distribuição de renda, nada que denunciasse o abismo social entre as classes.” Já formada, foi atrás dos números da fome e da miséria no Brasil e ficou profundamente tocada. Na época, com 22 anos e recém-formada, quis acreditar que o problema se devia à extensão territorial do país. “Com o tempo, vi que as coisas não acontecem porque os valores da sociedade estão deturpados e a política caminha na contramão das necessidades do povo”, critica.

Apesar dessa visão crítica da realidade brasileira, Luciana não sabia por onde começar. Casou-se, morou fora do país, fez mestrado em administração e foi tocando a vida sem nunca perder de vista a questão da miséria.

Herdeiras de uma grande distribuidora de revistas, Luciana passou a se dedicar aos negócios da família em São Paulo.

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Por Patrícia Bernal-Bons Fluidos