O que os empreendedores brasileiros podem aprender com a tragédia na boate Kiss
Exatamente um mês depois da tragédia na casa noturna Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande Sul, olhar para a catástrofe na tentativa de tirar dela algumas lições pode ser uma forma de evitar qualquer situação minimamente semelhante volte a ocorrer. O incêndio de 27 de janeiro matou 239 pessoas, deixou centenas de feridos e marcas que não se restringiram às famílias e aos amigos das vítimas.
Por todo o país, prefeituras se mobilizaram para revisar alvarás de casas noturnas e outros ambientes fechados e aumentar a segurança. Enquanto isso em Santa Maria, o inquérito sobre o incêndio continua em aberto e deverá ser concluído até o próximo domingo, 3 de março. Até o momento, 350 pessoas foram ouvidas e mais 150 devem depor até o fim de semana.
Mas, que lições tirar de uma tragédia assim? O que deveria ter sido feito para impedir a morte de tantas pessoas? O que a trajetória empresarial dos donos da casa noturna Kiss pode ensinar a empreendedores? Hoje revisitamos algumas dessas questões tentando extrair ensinamentos que possam ser aplicados por pequenos e médios empresários a seus negócios, para evitar desde crises e imprevistos menores até incidentes como o da Kiss.
1. A escolha do sócio
Para esse ponto é importante fazer um breve histórico da casa noturna: a boate Kiss, inaugurada em 2009, nasceu da sociedade entre dois empresários, Elissandro Spohr, conhecido como Kiko, e Mauro Londero Hoffmann. Spohr já tinha uma revendedora de pneus, e Hoffmann é dono de bares, restaurantes e casas de show em Santa Maria. De acordo com uma reportagem publicada pela revista Época, Hoffmann comprou 50% das cotas da Kiss no meio do ano passado, para salvar o empreendimento da falência. A boate, porém, não estava no nome de Spohr, mas nos de sua irmã e sua mãe, devido a dívidas de seu negócio anterior. Funcionários afirmaram em depoimentos que Hoffmann não era um sócio atuante na casa, e ele mesmo disse que só fazia parte da divisão dos lucros.
As poucas e contraditórias informações sobre os sócios e seus papéis na casa noturna levantam reflexões sobre como encontrar o parceiro ideal no momento de abrir uma empresa. “Mais do que um bom sócio, você precisa de um negócio que esteja dentro da lei, para saber se está investindo em um problema ou em uma solução”, afirma José Alfredo Lion, advogado especialista em direito empresarial. Com mais de 20 anos de atuação na área, Lion diz que antes mesmo de assinar um contrato societário, qualquer empreendedor precisa fazer uma pesquisa sobre a vida de seu sócio e identificar qualquer problema que possa prejudicar sua própria carreira. No caso do investimento em um negócio já estabelecido, descobrir como anda a saúde da empresa como um todo (e não apenas a financeira) é essencial.
O próximo passo é formalizar a união por meio de um contrato social. Para Gilberto Sarfati, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), problemas societários são bastante comuns, o que requer um contrato claro, que estabeleça os direitos, as obrigações e as atribuições de cada um. Lion ainda recomenda a assinatura de um instrumento particular de acordo de acionistas, que cria regras de boa convivência e de lealdade entre os envolvidos, e que ficarão em voga até a dissolução da empresa. “Em qualquer sociedade empresarial, a conversa e o contato frequente entre os sócios são essenciais para o sucesso”, afirma Sarfati. “Caso os atritos sejam muitos, é recomendado pensar em terminar a sociedade por meio da venda das partes ou da própria dissolução de negócio.”
2. Como lidar com dívidas ao abrir uma nova empresa
Durante o processo de investigação sobre os sócios, descobriu-se que a revendedora de pneus de Spohr deve cerca de R$ 3 milhões em impostos ao governo federal e seus bens foram penhorados. Para Sarfati, professor da FGV-EAESP, o Brasil ainda tem uma visão muito negativa sobre o empreendedor que fracassa em um negócio e tenta empreender novamente. “Ninguém deveria ser visto como um criminoso só porque sua empresa quebrou e ele quer empreender novamente”, diz. “Em outros países, e aqui também, é muito comum abrir um novo negócio justamente para pagar dívidas.”
Ronaldo Gotlib, advogado e autor do livro Dívidas? Tô Fora – Um guia para você sair do sufoco, afirma que o empresário deve organizar suas dívidas em dois tipos, de acordo com a urgência do pagamento: as mais agressivas estão relacionadas a questões fiscais e trabalhistas, que podem prejudicar muito o negócio e sua imagem, e devem ser pagas antes. As mais brandas são as relacionadas a empréstimos com bancos, que sempre podem ser renegociadas mesmo durante a abertura de um novo negócio.
Obviamente, o cenário perfeito é que um empresário cuide de suas dívidas antes de começar uma nova empresa. No caso de dívidas muito agressivas, a melhor opção é evitar a abertura de um novo empreendimento. Diante de problemas financeiros mais controláveis, as soluções podem ser criar um planejamento orçamentário e ajustar as dívidas ao desenvolvimento da empresa. “O que o empresário não pode fazer é começar sem recursos por causa de dívidas”, diz Gotlin. “Isso é suicídio empresarial, principalmente se levar à negligência em determinados aspectos do negócio, como a segurança.”
3) Cuide da segurança
A principal discussão depois do incêndio na boate Kiss foi relacionada à segurança em empresas. Qualquer negócio deve se atentar às exigências feitas por órgãos que protegem tanto os consumidores quanto os trabalhadores, como o Ministério do Trabalho, com a portaria 3214/78, o Corpo de Bombeiros e a Associação Brasileira de Normas Técnicas. “Desde o começo da formatação e da construção do local físico da empresa, seus donos devem ficar atentos a qualquer condição que facilite acidentes”, afirma Kelly Marangon, advogada da Marangon, empresa de consultoria em segurança do trabalho. “No caso de incêndios, por exemplo, essa proteção não pode ficar restrita à instalação de alguns extintores no local”, diz. Segundo ela, a empresa deve ter um projeto de combate a incêndio feito por um profissional habilitado e devidamente aprovado pelo Corpo de Bombeiros, em que haja também a previsão de situações de risco.
Para evitar tragédias como a de Santa Maria, é preciso redobrar o cuidado com a prevenção, checando saídas de emergência, quantidade e validade de extintores, e quaisquer outros pontos relacionados à segurança. “Não existe risco zero, mas se você segue todas as normas de segurança estabelecidas por lei, boa parte do caminho está andada”, afirma Tatiana de Miranda Jordão, diretora-executiva da Crisis Response, empresa especializada em gestão de crises.
Ainda assim, acidentes podem acontecer mesmo em empresas muito cuidadosas e, portanto, é preciso se preparar para eventualidades. Segundo Tatiana, que também é professora de gerenciamento de crises e planejamento para contingências no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), primeiro é preciso envolver os donos e o alto escalão da empresa em todo o processo e não apenas escolher alguns funcionários para esta responsabilidade. Depois é necessário analisar quais são as possíveis áreas ou os pontos vulneráveis da sua estrutura e identificar planos de ação em caso de problemas em cada um deles. “Dessa forma você saberá como responder rapidamente”, diz Tatiana.
4) Treinamento em segurança
Um passo importante para manter uma empresa segura é o treinamento de seus funcionários. “Para os diversos trabalhos realizados, o colaborador deve ser treinado sobre como executar sua atividade com segurança”, afirma Kelly, da Marangon. Segundo ela todos devem saber como agir em caso de um acidente com um funcionário ou cliente ou na ocorrência de um incêndio em seu local de trabalho.
A equipe, portanto, deve estar ciente de como se comportar em cada situação – todas aquelas que você analisou e identificou anteriormente – e também saber com quem entrar em contato. Realizar treinamentos práticos para acostumar seus colaboradores a situações assim pode aumentar a eficiência deles em um incidente de verdade.
5) Gerenciamento de crise
Não importa qual é o tamanho do incidente dentro de sua empresa – desde um cliente que encontra um inseto em sua refeição até um incêndio com vítimas –, você deve estar preparado para atuar diante de uma crise. Isso vale tanto para uma resposta aos seus clientes quanto para os meios de comunicação, caso a situação tome proporções maiores.
O primeiro passo é sempre reconhecer o erro e não alimentar discussões ao reagir de forma agressiva. Caso haja ações legais, o ideal é procurar sempre uma solução amigável e evitar dispendiosas brigas judiciais. “Indenize quem precise ser indenizado e evite processos demorados, que só aumentam a raiva e o descontentamento do consumidor e acabam se disseminando para outros clientes”, afirma o advogado e autor Ronaldo Gotlib.
Em casos mais sérios, o empresário deve procurar as vítimas e recorrer ao seu seguro para amenizar os problemas dessas pessoas, usando, inclusive, seu patrimônio, caso o valor do seguro não seja suficiente. “Nesses casos é preciso esquecer o lado empresário e tomar a decisão ética e justa”, afirma o advogado José Alfredo Lion. Segundo ele, em casos como o da Kiss, o empresário deve ir ao Ministério Público e assinar um termo de ajuste de conduta, assumindo suas falhas e se comprometendo a fazer tudo que for preciso para se ajustar às exigências da lei, mesmo diante de possíveis sanções.
Por Rafael Farias Teixeira
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