Como o produto mais desejado — e disputado— deste verão se tornou o novo símbolo da ascensão da classe média, mostrando que o brasileiro está disposto a pagar o que for preciso para comprar seu próprio frio
Ar-condicionado: aparelho está presente em 5% dos domicílios brasileiros (Reprodução)
Em seu livro A Riqueza e a Pobreza das Nações, o historiador americano David Landes, da universidade de Harvard, descreve o calor como inimigo da prosperidade. Como exemplo, afirma que só depois do advento do ar-condicionado as cidades do Sul dos Estados Unidos ficaram ricas. Pois o Brasil que quer ficar mais próspero também gasta — e muito — para comprar seu próprio frio. As vendas dobraram em 2013, ainda que diante de preços pouco acessíveis. Um aparelho custa, em média, 1 000 reais, sem contar os gastos com instalação, que podem triplicar esta conta. Com o aumento da demanda, há filas de espera de até 15 dias para a aquisição do produto. Mais que um mero resfriador de temperatura, o ar-condicionado é, hoje, o mais novo símbolo da ascensão da classe média.
As previsões meteorológicas mais recentes dão conta que nunca houve um verão tão severo no Centro-Sul do país. A seca deve prevalecer, pelo menos, até a segunda metade de fevereiro, aponta a Somar Meteorologia. Mas muitas famílias brasileiras não estão dispostas a economizar no orçamento e aguentar mais semanas (ou verões) tão quentes. As filas para comprar o aparelho fazem voltar à memória o período de escassez caraterístico da hiperinflação. Segundo varejistas consultados pelo site de VEJA, a venda é praticamente instantânea à chegada do produto às lojas. O prazo de instalação é de, no mínimo, três semanas. “Com o aumento da demanda, a logística e o estoque dos fabricantes não comportam as vendas”, afirma Rodrigo Men, diretor comercial da FR Climatização, em São Paulo, que vende e instala os aparelhos. Na Passos Ar-Condicionado, também na capital paulista, são mais de 30 novos clientes que procuram a empresa diariamente para contratar os serviços.
Modelo Split impulsionou adesão aos aparelhos no país
A demanda pelo produto dobrou entre 2012 e 2013, segundo o Centro da Indústria do Estado Amazonas (CIEAM), que representa as indústrias da Zona Franca de Manaus, polo produtor de mais de 90% dos aparelhos de ar-condicionado (dos modelos de janela e Split) comprados no Brasil— apenas os portáteis são importados. Já a oscilação de preço (felizmente) não alcança níveis tão elevados. É de alta de apenas 10% entre dezembro e janeiro para os modelos mais vendidos, como os da Consul e LGE, segundo a ferramenta de comparação de preços do site Buscapé. O grande peso no bolso das famílias vem do preço da instalação, que aumentou de cerca de 500 reais por aparelho em épocas de baixa demanda para 1.000 reais em janeiro deste ano. Somam-se a isso as reformas que são requeridas para adaptar as residências a receber a máquina. No caso do Split, é preciso contratar um pedreiro e um eletricista para interligar as duas unidades – interna e externa – da máquina e criar acesso a um sistema elétrico com voltagem 220 (ou 380, dependendo da máquina) próximo de onde o produto for ligado. Além disso, deve-se instalar um dreno que escoe até o encanamento do esgoto a água liberada durante o processo de resfriamento. O preço total para que um ar-condicionado comece a refrigerar apenas um cômodo é, em média, de 3 000 reais — mas pode ultrapassar 5 000 reais, dependendo da complexidade da obra.
Tais valores não assombram os brasileiros que, hoje, têm acesso ao crédito — e prezam o próprio sono. Tanto que o público consumidor dos aparelhos de ar-condicionado mudou. Da mesma forma que os automóveis, as roupas de marca e os eletrodomésticos de última geração fazem a cabeça da classe-média baixa, o ar-condicionado também ganhou espaço. “Eles estão se sacrificando mais para poder comprar pelo simples fato de não conseguirem dormir. Antes, não podiam solucionar esse problema. Agora, com o crédito, ficou mais fácil”, afirma Adão Lumertz, da Associação Sul Brasileira de Refrigeração, Ar-Condicionado e Ventilação (ASBRAV). Segundo Lumertz, a classe média baixa tem aderido ao produto, sobretudo, no Sul e no Sudeste, onde o calor se instalou de maneira súbita. “São regiões em que a necessidade não era tão grande e a renda é mais alta. Com o calor, a maior demanda surge daqui. É a demanda dessas áreas que a indústria está com dificuldades de atender”, afirma.
Para mensurar o aumento da renda e do padrão de vida das famílias, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza em seus levantamentos indicadores como a presença de máquinas de lavar em domicílios. Diferentemente das geladeiras e fogões, aparatos vitais presentes em quase todas as residências visitadas pelos recenseadores, as lavadoras são consideradas supérfluos — já que seu uso serve para facilitar a rotina das famílias e poupar tempo. Ao longo dos últimos dez anos, o porcentual de lares com máquinas de lavar saltou de 30% para 50%, mostrando a maciça adesão dos brasileiros ao produto. O ar-condicionado consta em apenas 5% das casas, mas sua ampla presença em áreas de temperaturas mais elevadas poderá transformá-lo no novo indicador de aumento da renda, segundo o Instituto. Para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, um terço das residências são equipadas com ar-condicionado.
Segundo Gustavo Melo, diretor de Marketing da multinacional Whirlpool, empresa responsável pela fabricação dos ares-condicionados Consul, as ondas de calor intensas e a ânsia da população por uma melhora da qualidade de vida têm levado a indústria de aparelhos refrigeradores a outro patamar. O grande salto teve início, segundo Melo, em meados de 2003, com a chegada de inúmeras marcas do modelo Split ao Brasil. Apesar do custo de instalação elevado, o aparelho pode facilmente ser colocado em edifícios com sacada, sem que se modifiquem as fachadas. “A questão arquitetônica foi crucial para a evolução do mercado. Enquanto no Rio a estrutura para aparelhos de janela é obrigatória nos edifícios, na maior parte do país, não. Em São Paulo, há a lei dos Condomínios que proíbe alteração de fachada. E só nos últimos anos os projetos passaram a prever sacadas nos quartos com este intuito”, afirma o executivo.
Enquanto o inverno não chega, a demanda continua provocando agitação no varejo. No Extra, as vendas de ares-condicionados em janeiro cresceram 100% na comparação anual. Na rede Ricardo Eletro, a alta superou 50%. Os varejistas reclamam da demora dos fornecedores em repor estoques. Segundo Melo, da Whirlpool, a capacidade de ampliar a oferta para além dos pedidos feitos antes da temporada é de 20%. A falta de estoque exemplifica a política industrial truncada do governo. A produção de ares-condicionados tem sido incentivada desde 2011, quando a alíquota do imposto de importação para os aparelhos Split subiu de 18% para 35% e desonerações foram implementadas. Contudo, ainda que a indústria tenha se adaptado rapidamente ao adensamento da cadeia produtiva, falta tecnologia para que seja autossuficiente. A chegada dos componentes importados é prejudicada não só pela distância geográfica da Ásia, mas também pela burocracia alfandegária do Brasil, além do caos nas zonas portuárias. Apesar de, hoje, mais de 90% da produção de Splits ser nacional, cerca de 40% das peças são importadas — sobretudo os componentes eletrônicos. “Há subcomponentes que demoram 180 dias para chegar a partir da data do pedido”, afirma Melo, da Whirlpool. Neste caso, a saída é esperar o inverno chegar.
Fonte: Veja.com