Certa vez, um empresário bem intencionado me procurou porque havia elaborado um projeto de conscientização sobre finanças pessoais. Seu projeto: realizar encontros semanais com trabalhadores e operários moradores de áreas periféricas ou de favelas do Rio de Janeiro. As reuniões, no formato AA (Alcoólicos Anônimos), seriam em grupo e mediadas por uma psicóloga. Assim, os participantes poderiam se colocar e trocar experiências sobre suas dívidas e seus gastos, com o objetivo principal de promover o hábito de poupar.
Ao ouvir toda a proposta, considerei pertinente e muito interessante, mas fiz uma ressalva provocativa e pedi permissão para fazer duas perguntas. Ele concordou. A primeira delas: “Qual é o seu salário?”. Ele engasgou, olhou para o lado, encarou os outros participantes da reunião e sorriu dizendo que essas coisas não se falam.
“O que faz a dívida das classes abastadas serem diferentes da dívida dos outros grupos sociais? A natureza da compra.”
Encerrou o assunto com um grande sorriso amarelo. Fiz a segunda pergunta: “O senhor está endividado?” Logo me veio a resposta rápida e direta: “Não”. Na mesma hora eu perguntei se ele tinha casa própria e ele respondeu afirmativamente. Eu retruquei perguntando se estava quitada, ele disse que não, estava pagando um financiamento. Então, mais que depressa, eu disse: “Se você está pagando a sua casa, ela é do banco, sim. Sinto te informar, mas você está endividado”. Ele riu e concordou.
O que faz a dívida das classes abastadas serem diferentes da dívida dos outros grupos sociais? A natureza da compra? Sentir-se endividado é culturalmente construído. Para uns, usar o crédito é como um direito, uma inclusão social. O crédito é dele, o pertence e é uma espécie de salvaguarda. Para outros, usar o crédito é sinal de fracasso, um mal necessário e uma desvantagem porque se perde dinheiro. No entanto, o crédito e a noção de endividamento têm forte apelo simbólico e precisam ser considerados quando desenvolvemos conhecimento sobre a temática. Não é simplesmente um estar ou não estar com dívida, não é simplesmente precisar ou querer o crédito. Há todo um conjunto de fatores, culturalmente construídos, que precisamos compreender e, para isso, se faz necessário conhecer a racionalidade econômica que rege as lógicas das pessoas, independente de quem sejam, onde moram, o que usam ou qual o salário recebem.
Fonte: Varejo S.A. (Por Hilaine Yaccoub – Antropóloga)