Com gráficos ruins e equipamentos caros, as últimas demonstrações do Metaverso levantaram ceticismo: por que tantas empresas estão investindo no universo híbrido?
Metaverso é uma concepção confusa para a maioria das pessoas. Após a mudança do nome da empresa Facebook para “Meta”, em outubro de 2021, e do anúncio de que a troca tinha o propósito de “refletir seu foco na construção de um metaverso“, a própria companhia de Mark Zuckerberg ficou associada à definição de um universo híbrido – real e virtual. Entretanto, o conceito de metaverso é mais antigo e mais importante do que um produto da companhia de Zuckerberg. Cientistas, escritores e especialistas ouvidos pelo Jornal Opção afirmam que um metaverso é inevitável; seja ele o de Zuckerberg ou não.
Definição
O termo data de 1992, e foi cunhado pelo escritor Neal Stephenson no romance de ficção científica “Snow Crash”. O “Metaverse” de Stephenson é um espaço virtual detido por uma empresa gigante da tecnologia, e áreas desse espaço estão disponíveis para compra. Os usuários obtêm acesso a ele através de computadores que projetam imagens realistas em óculos de realidade virtual.
Stephenson também descreve uma subcultura de pessoas que optam por permanecer continuamente conectadas ao Metaverse usando terminais portáteis, óculos e outros equipamentos. Eles são apelidados de “gárgulas” devido à sua aparência grotesca no mundo físico. Mas, dentro do Metaverse, os personagens, que experimentam aquele ciberespaço a partir de uma perspectiva em primeira pessoa, aparecem como avatares da forma desejada – belos e imponentes ou realistas.
A literatura de Stephenson (e outros, como William Gibson na trilogia “Sprawl”) antecipou em três décadas um fenômeno que já começou a se tornar muito real para nós. Celso Gonçalves Camilo Júnior é doutor em Inteligência Artificial, professor e pesquisador na área de Inteligência Computacional na Universidade Federal de Goiás (UFG). O professor afirma que, em média, já passamos um terço de nosso tempo acordados nas redes sociais ou editando conteúdo para publicar nas redes sociais.
“Então, de certa forma, já vivemos em um universo híbrido entre físico e digital – “figital”, como alguns pesquisadores definem”, diz Celso Camilo. O professor lembra que, há mais de duas décadas, os jogos já possibilitam a interação entre avatares de pessoas de diferentes lugares do mundo em uma arena virtual. Os games também foram pioneiros no comércio de produtos virtuais para personalizar a identidade dos jogadores, outra característica fundamental para caracterizar o metaverso.
Desta forma, qual a diferença entre o metaverso e um jogo como World of Warcraft? Existem diversos fatores. Celso Camilo aponta que, como a moeda corrente das redes sociais é a atenção do usuário, um metaverso seria uma evolução das plataformas atuais por fornecer um ambiente ainda mais imersivo. Para isso, a principal aposta das empresas de tecnologia são os óculos de realidade virtual (VR). “Fabricantes de jogos já haviam percebido a necessidade de tornar a experiência mais envolvente. Integrando a maior quantidade de sentidos do usuário quanto for possível, se reduz a probabilidade de churn, de saída”.
Além da customização de uma persona e da imersão dos sentidos, outra característica do metaverso é a integração entre os mundos físico e digital, o borrar das fronteiras. “Vão existir processos econômicos dentro da rede – não só com empresas do varejo fazendo vendas no metaverso também, como na rua – mas estamos falando de uma economia ativa no mundo virtual. Em termos de imersão, isso é forte porque a receita das pessoas pode estar integrada: criptomoedas, mais a renda do trabalho tradicional, mais ativos digitais como NFTs.”
Já existe um metaverso de fato?
Advogado e consultor jurídico na área de regulação e tecnologia, Fernando Abdelaziz é especialista em Direito Digital e Inovação. Ele afirma que, atualmente, ainda não temos um metaverso, mas que seu advento é inevitável: “Há um projeto, um ‘proto-metaverso’ ligado aos jogos, aos NFTs, à criptomoedas. Poucas pessoas atualmente têm acesso aos óculos VR, mas o caminho natural de todas as tecnologias é o da democratização pela redução do preço: o celular demorou quase 30 anos para se popularizar. Hoje, até pessoas em situação de pobreza têm o aparelho. As grandes empresas já compreenderam que no futuro deveremos ver mais e mais usuários entrando no metaverso; é inevitável.”
Entretanto, Celso Camilo lembra que, em tecnologia, os produtos que hoje facilitam nossas vidas não foram criados “do nada”, mas evoluíram de equipamentos destrambelhados, caros e difíceis de se usar. “A gente se assusta, mas, quando percebemos, já estamos dentro. Antes, as lojas físicas eram pontos de venda fundamentais para o varejo; hoje, elas fazem a função de showroom e estoque, pois a decisão da compra geralmente é tomada no ambiente digital. Às vezes, temos dificuldade de imaginar mudanças no que é muito tradicional, mas as novas gerações não terão esse problema.”
Celso Camilo diz que as vantagens são claras e as promessas são muitas: “Ao invés de escutar um podcast sozinho, poderemos entrar no programa virtualmente para participar, trocar opiniões. A tendência é que os produtos se tornem cada vez mais interativos. Reuniões de família, trabalho, tudo isso é inevitável – seja por contingências como a pandemia, ou por redução de custos.”
O especialista em Direito Digital Fernando Abdelaziz concorda que o movimento é inevitável: “Acredito que as vantagens de economia de tempo e dinheiro serão decisivas – para uma empresa, pagar o aluguel de um escritório em edifício comercial é mais caro do que manter um funcionário em home office. Mas também quebraremos diversas barreiras do próprio espaço. Estamos distantes agora, mas poderíamos estar cara a cara, fazendo essa entrevista no metaverso, caso tivéssemos óculos VR e melhores tecnologias para captar expressões faciais.”
Seja quem você quiser
Um dos pilares do Metaverso, como ele foi originalmente concebido, é a possibilidade de personalização da própria aparência, de criação de uma personalidade, de identificação com uma persona. Fernando Abdelaziz reflete que este fenômeno, longe de ser uma nova maluquice, é o desdobramento de um movimento que já vivemos.
“Nossa sociedade passa por um movimento de busca por individualidade”, afirma Fernando Abdelaziz. “Hoje, flexibilizamos aspectos em nossa identidade que no passado eram imutáveis – pessoas podem se identificar com gêneros diferentes daqueles em que nasceram, por exemplo. Provavelmente, no futuro, teremos uma aparência no trabalho e outro aspecto nos momentos de lazer. Isso é muito interessante por trazer maior liberdade individual”.
Celso Camilo, entretanto, aponta a necessidade de acompanhar estudos sobre os impactos da realidade híbrida no comportamento. “Haverá muitos benefícios, mas já devemos destacar que surgirão dificuldades também. Eventuais problemas não serão culpa da ferramenta, mas de seu uso. É como os smartphones, que mudaram nosso mundo, mas podem ter um uso pernicioso. No caso do metaverso, há a preocupação com a possibilidade de fuga do fracasso no mundo físico para uma realidade virtual onde se é bem sucedido, cheio de amigos, rico, etc. Da mesma forma que há muito tempo temos outros vícios escapistas que podem ser problemáticos para algumas pessoas”.
Quão real é a realidade virtual?
Raphael Moura Cardoso é doutor em Psicologia Experimental, professor da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador nos temas de Cultura e Inovação Tecnológica; Desenvolvimento Humano e Solução de Problemas, Saúde Digital, e Cognição Comparada. O psicólogo afirma que há várias décadas cientistas estudam o comportamento, a cognição e a fisiologia humana em ambientes virtuais.
Raphael Cardoso cita o estudo de Mel Slater e colegas, que em 2006 reproduziram um estudo clássico da psicologia no ambiente virtual e compararam seus resultados. O original é o experimento de Stanley Milgram, da década de 1960, em que os participantes eram levados a crer que estavam aplicando choques elétricos como punição a outros voluntários do estudo (na realidade, não havia choques, eram apenas atores).
O resultado foi que as respostas fisiológicas e comportamentais registradas nos participantes que aplicaram punições em ambiente virtual são muito semelhantes às respostas daqueles que acreditavam punir no universo real. Desta forma, a depender do grau de imersão atingido, as interações digitais podem ser percebidas como reais. “Outro tema estudado no mundo virtual é a exclusão social”, diz Raphael Cardoso. “Também registramos respostas similares entre aqueles que sofrem exclusão no mundo real e virtual.”
Riscos
Celso Camilo, doutor em Inteligência Artificial, chama atenção para os vulneráveis – jovens, idosos e mesmo adultos – que podem ser facilmente manipulados quando entram em um processo que não conhecem. “Quem chega inocente no processo, pensando que se trata simplesmente de um jogo, pode ser um alvo fácil. Nesta ‘economia da atenção’, existem grandes investimentos de empresas que estudam há tempos o controle de nossa concentração. As pessoas devem chegar conscientes, além de fazer uso crítico e informado da ferramenta”, afirma.
Fernando Abdelaziz vai além: “Não só no metaverso, hoje já estamos atrasados na educação digital. Há pouco tempo, incorporamos a educação financeira, o empreendedorismo, e outros valores no currículo de crianças. Deveríamos exigir o mesmo da educação digital, pois as pessoas desconhecem alguns de seus direitos fundamentais – as pessoas não sabem que detém o direito sobre suas informações pessoais e os dados que geram ao usar um computador.”
O consultor jurídico afirma se preocupar em especial com as crianças, que desde muito novas usam a internet e que frequentemente não são acompanhadas pelos pais. “Os pais não têm informação, tempo ou energia para preparar esses jovens que estão entrando em um ambiente onde os interesses comerciais são enormes. Falamos para as crianças que elas não devem conversar com estranhos na rua, mas não damos o mesmo direcionamento no mundo digital.”
Fonte: Jornal Opção