Esta reportagem demorou dois anos para ser escrita. E a culpa não é (só) da minha desorganização. Eu tenho Transtorno de Déficit de Atenção. Aqui você vai entender como meu cérebro funciona
Buzina de carro, latido de cachorro, choro de bebê, “Que horas são?”, “Rola algo no Facebook?”, “Que programa de TV é esse?”, “O que tem para comer?”, “Por que alguém vai ler esta matéria mesmo?”. Apenas 5 minutos sentado em frente ao computador e tudo isso já passou pela minha cabeça. Tudo ao meu redor fala mais alto do que escrever este texto. Fecho a janela, checo o relógio, surfo na net, desligo a tv, como chocolate. Só então consigo voltar para explicar o que você ganha ao continuar lendo esta matéria: uma visão sobre como funciona uma mente inquieta. Nas próximas páginas, você vai enxergar o mundo pelos meus olhos. Bem-vindo ao cérebro TDAH.
A redação da SUPER não é exatamente o lugar mais tranquilo para manter a atenção. Pilhas de livros nas mesas, revistas importadas nas paredes, gente falando ao telefone. Enquanto rabisco caoticamente num bloquinho, o diretor de redação me explica uma pauta: “Quero que você escreva sobre TDAH. Mas em primeira pessoa. Sua experiência pode ser interessante para o leitor”. Topo fazer a matéria imediatamente. Marcamos o prazo de um mês para entregar o texto que você lê agora. Prazo real de entrega: dois anos.
Se você tem TDAH, não é difícil se identificar com a história acima. Ela expõe um dos traços mais característicos do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: dificuldade em gerenciar o tempo. O paciente TDAH também se reconhece facilmente na brincadeira de Douglas Adams, autor do Guia do Mochileiro das Galáxias: “Amo prazos de entrega. Adoro o som que fazem quando passam voando pela minha janela”. Quem sofre de TDAH tende a ser tachado de avoado ou incapaz. Mas julgamentos como esses não explicam as nuances da mente TDAH. Eu mesmo, por exemplo, perco as contas de quantas vezes chego atrasado a compromissos e esqueço datas de aniversário. Ao mesmo tempo, tenho a estranha capacidade de ler textos que me interessam por horas a fio nos ambientes mais caóticos possíveis.
É bem provável que você conheça mais pessoas com esse perfil. Estima-se que um em cada 20 adultos apresente sintomas suficientes para ser diagnosticado com TDAH. Um estudo afirma que o impacto da doença na produtividade dos EUA é de US$ 77 bilhões de prejuízo por ano. Uma cifra que ultrapassa a da depressão (US$ 43 bilhões) e a do abuso de drogas (58). Por isso, entender o TDAH é uma tarefa cada vez mais importante. E é isso que eu fiz, procurando alguém que conhece o assunto bem de dentro. Mais exatamente, de dentro de seu próprio cérebro.
Uma pilha de exames com cérebros coloridos. É o que mais chama atenção na mesa da psiquiatra e autora de livros Ana Beatriz Barbosa. Mas não consigo tirar os olhos de um outro objeto: um bloco de anotações. Dentro dele, vejo a prova física do que já sabia antes: não sou o único com problemas de atenção na sala. Os rabiscos caóticos só podem ter vindo de um lugar: outro cérebro TDAH.
Enquanto enche de riscos o seu bloquinho, Ana Beatriz explica o que há de errado em nossas cabeças: “O defeito está numa parte do cérebro chamada lobo frontal, que fica próxima à testa.” O lobo frontal é uma espécie de gerente executivo do cérebro. A função dele é coletar informações e enviar ordens em forma de impulsos elétricos para as outras partes do órgão. Mas, como todo bom gerente, exige um pagamento adequado para trabalhar. No caso, o pagamento é em dopamina, uma substância que regula a interação entre neurônios. Sem ela, os neurônios do lobo frontal não conseguem conversar direito. Quando isso acontece, o cérebro começa a funcionar como uma empresa sem CEO: ganha o setor que grita mais alto. Com medo da falência, a empresa cerebral ainda pode tentar criar uma espécie de caixa dois de dopamina. Aí começa uma busca desesperada por tudo que promove a produção do neurotransmissor: açucar, sexo, nicotina, jogo, álcool, drogas ilegais. Não é à toa que 17 a 45% dos adultos com TDAH apresentam problemas com álcool, e que o risco de se viciar em drogas é o dobro para quem tem essa doença.
Mas como diagnosticar alguém assim? “Primeiro, é preciso sorte”, diz a psiquiatra. “Pessoas com TDAH muitas vezes não têm ideia de que sofrem de uma doença”. Sorte foi exatamente o que levou Ana Beatriz a ser diagnosticada. Atrasada para um curso na Universidade Berkeley (EUA) -“Começava às 8h. Cheguei 9h15.”-, foi obrigada a assistir à única palestra disponível no horário. O palestrante era Russell Barkley, um dos pioneiros no estudo do TDAH. Ao ouvir os sintomas da doença, Ana Beatriz não teve dúvidas: “Sou eu!”. Logo que a palestra acabou, foi atrás de Barkley e pediu para fazer um teste psicológico. Ele voltou com o resultado positivo. Assim que começou a se tratar para TDAH, Ana Beatriz, que cursou ao mesmo tempo Medicina, Física e Odontologia, conseguiu pisar no freio da mente e seguir uma estrada só: especializou-se em TDAH e hoje é autora de best-sellers sobre o tema.
Homo desatentus
Savana africana, 30 mil a.C. Em um pequeno grupo de Homo sapiens, alguém se esforça para entender a conversa. Não é tarefa fácil. Folhas balançando ao vento, pilhas de ossos ao lado, trilhas de animais no chão. Tudo capta seu olhar. Mas o TDAH pode ter sido uma vantagem para nossos ancestrais. Na luta pela sobrevivência entre caçadores-coletores, levava vantagem quem possuía uma misteriosa habilidade presente no cérebro TDAH: o hiperfoco. Hiperfoco é uma capacidade de superconcentração característica de muitas mentes desatentas. Você já deve ter topado com gente assim: o menino que não para quieto, mas joga 10 horas de videogame, ou a pessoa que não vai à aula, mas passa a tarde tocando violão. Seriam todos descendentes diretos do caçador distraído, mas supereficaz. Para ele, um animal na savana é como um videogame ou um violão: algo que monopoliza o cérebro. Essa capacidade de ver uma presa e apagar o resto do mundo conferiu vantagens evolutivas. E, em tese, possibilitou que os genes do caçador TDAH chegassem até nós. “Estima-se que 80% dos casos de TDAH têm origens genéticas”, diz o psiquiatra da New York University Lenard Adler.
Mas voltemos a 2012. Faz 4 horas que escrevo sem parar. Não batuco na mesa, como de costume. Nenhuma janela aberta no navegador. Quem me conhece pode achar que estou possuído. E estou: por uma pílula. O mecanismo exato de funcionamento dos medicamentos para TDAH é desconhecido. Mas os efeitos mentais são bem familiares. Em alguns minutos, o cérebro, que funcionava como um rádio fora de estação, entra em sintonia. E o impossível se torna possível: executar uma só tarefa por vez.
Ritalin, Aderall, Concerta, Venvanse. São algumas das drogas mais eficazes da indústria farmacêutica na guerra contra os problemas de atenção. Mas ainda não dá para afirmar que existem armas de precisão no mercado. É possível, por exemplo, ingerir um medicamento com um alvo em mente e acertar outro: engolir uma pílula com a intenção de escrever um texto e terminar arrumando a gaveta de meias. Muito menos existe uma espécie de bomba atômica contra o TDAH: um medicamento que funcione com 100% dos pacientes. Para tratar o TDAH, ainda é necessário alguém que entenda de estratégia de guerra: um psiquiatra capaz de testar os medicamentos mais adequados a cada caso.
Mas agora a pergunta que realmente interessa: como saber se você tem TDAH? Se você chegou sem interrupções até aqui, a resposta mais provável é não. (Mas pode ser que sim. E você está em hiperfoco agora). A verdade é que só um profissional vai saber responder. Mas, se a resposta for sim, não se desespere. Afinal, um simples TDAH não impediu você de ler este texto até o final, não é mesmo? E nem me impedirá de escrever muitos outros.
Para saber mais
Mentes Inquietas
Ana Beatriz Barbosa, Fontanar, 2009.
Fonte: Super Interessante