SPC Brasil teve registro histórico: 54 milhões estão ‘negativados’. Em JF, Sedecon atende a média de mil superendividados por mês
Papel, caneta e calculadora em punho. É assim que o brasileiro tem enfrentado a missão de fechar as contas no fim do mês. Mas nem todos têm conseguido bons resultados. Dados do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) mostram que 54 milhões de pessoas estão com nome “negativado” no país, o que corresponde a 37% do público consumidor. Num cenário em que a taxa de juros cresce e o índice de inflação é considerado alto, a preocupação de especialistas é que a inadimplência atinja patamares maiores, freando ainda mais o crescimento econômico.
A inadimplência do brasileiro teve o maior registro da série histórica do SPC Brasil em maio deste ano, conforme explica o gerente financeiro do órgão, Flávio Borges. “Houve crescimento de 9,56% em relação a maio de 2013.” Para ele, a ampliação do acesso ao crédito somada à falta de planejamento orçamentário contribuiu para o aumento do número de inadimplentes. “Agora vivemos período de inflação e altas taxas de juros, o que dificulta a normalização da situação destes consumidores e, consequentemente, reduz o poder de consumo.”
No mesmo período, os juros médios cobrados dos consumidores registraram a 12ª alta consecutiva, conforme dados da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac). Entre as seis linhas pesquisadas pela entidade, cinco tiveram aumento: juros no comércio, cheque especial, financiamento de veículos, empréstimo pessoal em bancos e empréstimo pessoal em financeiras. Apenas o cartão de crédito se manteve inalterado. “Entre abril e maio deste ano, a Selic registrou elevação de 3,75 pontos percentuais, passando de 7,25% a 11%. No mesmo intervalo, os juros médios para pessoa física subiram de 88,61% para 100,76% ao ano, avanço de 12,15 pontos percentuais”, explicou em nota.
Já a inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atingiu 6,5% no acumulado de maio de 2012 a maio de 2013.
Superendividamento
As consequentes elevações das taxas de juros aumentaram a dificuldade de um aposentado juiz-forano de 63 anos, que preferiu não se identificar, quitar sua dívida. “Eu estava em um trabalho temporário e recebia uma renda extra. Quando esse dinheiro acabou, precisei contrair empréstimos para conseguir arcar com as despesas e a pensão que pago para meus dois filhos”, relembra. “Paguei as parcelas, mas os juros estavam muito altos. Pedi mais dois empréstimos e, no fim das contas, estava tentando pagar uma dívida com outra dívida.” Segundo ele, hoje o valor em débito é de quase R$ 70 mil. Com o caso de superendividamento, ele procurou auxílio da Agência de Proteção e Defesa do Consumidor de Juiz de Fora (Procon/JF) para tentar negociar a dívida e a forma de pagamento diretamente com a instituição financeira credora. “Não tenho pretensão de sonegar, só quero que me sejam dadas melhores condições. Não posso envolver mais de 30% da minha renda em cada parcela.”
No ano passado, o Procon/JF iniciou trabalho de atendimento às pessoas superendividadas. A procura por este tipo de auxílio cresceu exponencialmente. Em 2013 foram feitas quatro audiências entre endividados e credores. De janeiro deste ano até o momento, o órgão fez 34. Os números do Serviço de Defesa do Consumidor (Sedecon) da Câmara Municipal são ainda mais alarmantes. O órgão chegou a atender média de mil pessoas superendividadas por mês. “É uma situação realmente preocupante”, afirma o assessor jurídico consultivo do Sedecon, Carlos Alberto Gasparete. “Recebemos pessoas que estavam contraindo uma dívida atrás da outra, formando uma verdadeira bola de neve.” Ele diz que o perfil dos superendividados é diversificado. “Não há uma idade ou classe social específica. Atendemos desde aposentados que recebem o salário mínimo e têm boa parte da renda comprometida até pessoas que recebem R$ 25 mil e devem R$ 30 mil. Percebemos que é um problema comportamental.”
Diante deste entendimento, Gasparete explica que o Sedecon irá realizar parceria com a UFJF para promover um atendimento ampliado aos superendividados. “Além da assistência jurídica, queremos capacitar nossos funcionários para realizar uma orientação educacional e psicológica.” O projeto será implantado ainda este ano.
Classes D e E são mais organizadas
Apesar de não haver definição sobre o perfil do público inadimplente brasileiro, pesquisa da empresa Plano CDE mostrou que o comportamento das classes D e E em relação à renda x dívida é mais organizado. “A inadimplência atinge pessoas de todas as classes, trata-se de uma questão comportamental. Mas o estudo mostrou que as classes mais pobres concentram maior número de consumidores cautelosos”, explica a sócia-diretora da empresa, Luciana Aguiar.
A pesquisa dividiu os consumidores em três perfis, de acordo com o relacionamento com o orçamento familiar. O perfil organizado faz gestão de ganhos e gastos e, quando possível, consegue poupar. Já o desorganizado não faz este controle e entra no vermelho com frequência. O terceiro perfil é chamado de “orientado pela dívida”, pois destina tudo o que ganha ao pagamento de contas.
De acordo com o levantamento, 71% dos consumidores que pertencem as classes D e E têm perfil organizado. O estudo considerou a Classe E aquela em que os indivíduos têm renda per capta entre R$ 82 e R$ 162, e a Classe D, entre R$ 163 e R$ 291. Para Luciana, a renda restrita é responsável pelo maior controle deste público. “Grande parte dos trabalhadores destas classes atua no mercado informal. Diante da incerteza de quando e quanto vão receber, eles aprenderam a lidar de forma mais controlada com o dinheiro.”
Ela garante que a percepção da dívida também é diferente para as classes sociais. “Para os consumidores das classes C, D e E, o endividamento é necessário para aquisição de bens. O Brasil vive uma cultura de parcelamentos. Para este público, a parcela não é considerada dívida, mas um mecanismo de acesso. Só quando ela está vencida e em aberto é que o consumidor se sente endividado.”
Intenção de consumo é a menor da série histórica
Resultado do atual cenário econômico, a Intenção de Consumo das Famílias (ICF) teve redução em junho, conforme pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC). O resultado de 120,4 pontos indica recuo de 1,6% ante a maio e de 7,4% em relação a junho de 2013. Pela segunda vez consecutiva, o número é o menor da série histórica. Diante disso, a entidade revisou para baixo a expectativa do volume de vendas para 2014, passando de 4,9% para 4,7%.Para a economista da CNC, Juliana Sampaio, “o alto nível de endividamento combinado com a taxa básica de juros elevada vem desaquecendo o consumo.”
Grande propulsora do consumo nos últimos anos, a Classe C também deve reduzir os gastos. “Estes consumidores comprometeram boa parte da renda a partir do maior acesso ao consumo de bens duráveis, moradia, escola particular e planos de saúde. Foi uma ascensão a duras penas, e eles não querem perder o que conquistaram. Mais do que fazerem novas dívidas, eles querem manter o que têm”, explica a sócia-diretora da Plano CDE, Luciana Aguiar.
Na análise do diretor da Faculdade de Economia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais (Corecon-MG), Lourival Batista, o cenário econômico atual requer cautela. “Viemos de um período em que a economia estava crescendo e, agora, ocorreu uma desaceleração deste processo. Estamos operando em pleno emprego, mas com menor dinamismo, e os custos estão mais altos.”
Para não ficar no vermelho, ele orienta evitar o endividamento. “A tomada de crédito deve ser feita em casos de necessidade. O consumidor deve tentar gastar o que tem, sempre mantendo alguma reserva. O cartão de crédito também precisa ser usado com cuidado. É preciso se lembrar que o parcelamento também é dívida.”
Lourival diz que o cenário econômico nacional ainda é de incerteza. “A economia internacional não está bem resolvida e pode gerar qualquer tipo de choque externo. Temos ainda uma corrida presidencial pela frente que não deixa claro como as questões de taxa de inflação e redução de crescimento serão conduzidas.”
Fonte: Tribuna de Minas