Os cachorros que conseguem sobreviver na rua são mais do que inteligentes: são os verdadeiros cães de raça
A designer Bruna Aragão, de 24 anos, conhece Joca desde que ele estava na barriga da mãe. Filho da vira-lata Susi com o poddle Savio, o cão foi doado ainda bebê para uma vizinha de sua manicure.
— Certo dia, enquanto fazia a unha, perguntei como estava aquele filhotinho tão fofo que vi nascer. Foi quando fiquei sabendo que ele estava sofrendo maus-tratos. Morri de pena e, num ato intempestivo, resolvi adotá-lo — lembra Bruna.
Assim como ela, cada vez mais cariocas estão adotando cães “sem raça definida”, tecnicamente conhecidos como SRD. Depois de décadas de reinado do poodle, do shih tzu e, mais recentemente, do buldogue francês, a matilha de vira-latas domesticados está em fase de crescimento na cidade.
— Acho que as pessoas se tocaram de que é um absurdo pagar R$ 4 mil, R$ 5 mil por um animal com pedigree enquanto há vários cachorros abandonados precisando de um lar — diz Bruna.
Mas o relacionamento entre Bruna e Joca quase não durou nem uma semana. O cão descabelado, de pernas e orelhas malhadas, chegou ao apartamento da família da designer, no Jardim Botânico, destruindo todos os objetos e pés de cadeiras que encontrou pela frente. Desesperada, Bruna resolveu inscrevê-lo em aulas de boas maneiras num canil. Três meses depois, Joca virou um novo cão.
— Ele precisa gastar energia. Damos uma volta na Lagoa todos os dias. Vou de bike e ele vai correndo — conta Bruna.
Temperamento imprevisível
O zootecnista Bruno de Castro, proprietário do Canil Hocus Pocus, em Guaratiba (que hospedou Joca durante três meses), explica que o comportamento do vira-lata, em geral, é imprevisível:
— Não tem como prever o temperamento de um vira-lata, que é um mix de raças. O rottweiler, por exemplo, é forte e bruto, um ótimo cão de guarda. Diferentemente do yorkshire, cão de companhia que dá trabalho por causa do pelo longo.
O zootecnista faz uma sugestão para quem não quer ter surpresas em relação ao comportamento nem ao tamanho do vira-lata:
— É mais fácil adotar um animal adulto, com temperamento e porte já definidos, que se adapte ao estilo de vida do dono. O problema é que todo mundo prefere adotar filhotinhos… Aí é uma caixinha de surpresas, não tem jeito.
A consultora de moda Mariana Salim, de 36 anos, não fazia ideia de quanto seu cão cresceria quando o viu pela primeira vez, dentro de uma caixa de sapato.
— Uma amiga veterinária o achou abandonado na rua e postou a foto no Facebook. Fiquei apaixonada — lembra.
Três anos depois, Embaixador é mais alto do que muitos labradores da vizinhança. Ele vai todos os dias trabalhar com Mariana no Estúdio Suspiro, na Gávea, e acabou virando modelo: toda segunda-feira ele aparece no Instagram da Leader. Tem dia que carrega uma mochila nas costas, tem dia que aparece de óculos. Ele ganha biscoitinhos caninos como cachê.
— O Embaixador dá zero trabalho, toma banho em casa e nunca teve um problema de saúde — diz Mariana, que participa de grupos de adoção no WhatsApp.
Impulsionado por mensagens trocadas por WhatsApp e através das redes sociais, o movimento de adoção de animais começou a ganhar fôlego após a tragédia na Região Serrana, em janeiro de 2011, observa Dina Pereira, fundadora da organização Patas & Patas, que há duas décadas protege os animais.
— A situação dos animais mobilizou muita gente. Após as chuvas que devastaram a região, 1.500 cachorros e 400 gatos foram resgatados — lembra Dina, que organiza, em parceria com a G.A.R. R.A. (Grupo de Ação, Resgate e Reabilitação Animal), feiras de adoção na Lagoa, todo segundo sábado do mês. — É maravilhoso notar que o vira-lata está virando o cão da moda. Mas o volume de abandono ainda é muito superior ao de adoção. Na Suipa, são 15 registros de adoção por mês e 50 abandonos por dia.
Na informal rede de adoção que foi montada na cidade, a ponta que resgata, acolhe e cuida está cada vez mais atuante, pelo menos no Facebook. Foi pela rede social e através de uma amiga em comum que a artista plástica Adriana Tavares encontrou Bella.
— Ela sofria de uma espécie de “síndrome do abandono”: quando ficava sozinha em casa, destruía almofadas, Havaianas. Resolvemos essa questão há um ano, quando uma amiga astróloga receitou um floral. Todos os dias pingo umas gotinhas de chicory no potinho de água da Bella e pronto — conta, orgulhosa.
Ela só não aprendeu a fazer xixi na rua.
— A gente anda, anda, e quando chega em casa ela sai correndo para fazer xixi na varanda. Mas tudo bem, ela é a minha maior companheira, além de ser muito carinhosa — conta.
“Companheira” e “carinhosa” também são adjetivos usados pelo fotógrafo Bruno Ryffer, de 33 anos, para definir sua vira-lata. Ele costuma dizer que foi ela que o encontrou. Morador da Barra e surfista nas horas vagas, ele estava indo ver o mar quando a cadelinha se aproximou.
— Mexi com ela como mexo com qualquer cachorro, mas ela começou a me seguir. Perguntei para o pessoal do quiosque se ela tinha dono, dei uma procurada ao redor, mas nada. Resolvi então amarrá-la com uma corda de kite e levá-la para casa, cheia de pulga.
Depois de um bom banho, a cadela ganhou nome, coleira de grife (da Zee.dog) e um nome: Zuka.
— Volta e meia me perguntam qual é a raça da Zuka. Dá o maior orgulho. Invento umas raças malucas, tipo “street dogue de bordeaux”. Acreditam — diverte-se Bruno.
A designer de acessórios Monica Rosenzweig se apaixonou por uma vira-lata que encontrou perambulando no calçadão da Praia de Ipanema.
— Fiquei com medo de que fosse atropelada e resolvi levá-la para casa. No caminho, um hippie veio ao nosso encontro e disse que era irmão do dono dela, e que ela se chamava Ganja. Depois de alguma conversa, entramos em acordo e fiquei com ela, que preferi chamar de Jackie — conta Monica.
A designer tornou a cadelinha modelo: Jackie aparece sobre uma prancha de surfe em fotos que estampam uma coleção de camisetas, com vendas revertidas ao Dogs Doações Adoções e Carinho.
— Jackie adora pegar onda e correr na areia — conta Monica.
Já Theo, o vira-lata de Thadeu Diz, diretor criativo da Zee.Dog, adora andar de carro conversível e posar para foto.
— O Theo foi achado por uma amiga na Gávea há dois anos, justamente quando estava para lançar a Zee.Dog. Ele acabou virando o nosso cão-propaganda — conta Thadeu, que criou a campanha Todos Pela Adoção. — Os cariocas estão começando a entender que o vira-lata é um cachorro irado, leal e inteligente.
Autor do livro “Vira-latas — Os verdadeiros cães de raça” (Ediouro), o publicitário e cineasta Tiago Ferigoli, que agora está produzindo um documentário sobre o tema, vai além:
— Os cachorros que conseguem sobreviver na rua são mais do que inteligentes: são os verdadeiros cães de raça.
Eles vivem (bem) na rua
Numa tarde abafada em São Paulo, dois anos atrás, o fotógrafo Edu Leporo estava passando pela Avenida Paulista quando se deparou com um casal de moradores de rua acompanhado por três vira-latas.
— Um dos cães estava sendo carregado num carrinho de supermercado pois era tetraplégico. Depois de conversar com o casal, descobri que os cachorros tomavam sorvete do McDonald’s todos os dias — conta o fotógrafo. — Descobri que muitos vira-latas são mais bem cuidados do que cães que vivem em apartamentos, alguns, por exemplo, só comem ração.
Nasceu ali o projeto Moradores de Rua e seus Cães, que tem página no Facebook e planos de virar livro e exposição.
— A ideia é aproximar os olhares apressados das metrópoles para ajudar a humanizar e “desmarginalizar” os vira-latas e, de alguma forma, transformar o projeto fotográfico em projeto social — explica ele.
Além de fotografar os cães, Edu conta as suas comoventes histórias no blog Essa Foto É O Bicho. Como a de Huck, que mora na Praça João Mendes com seu José e outros dois cães.
— O seu José cuida dos cães e todos cuidam do seu José — conta Edu.
Fonte: O Globo