Falta conscientização para o trato correto do lixo eletrônico

4 de junho de 2012
Conscientizar população sobre a necessidade e a importância de dar destinação correta aos eletrônicos é um dos desafios -Foto: Mariana Kruse/PMPA/Divulgação

O Brasil aprovou em agosto de 2010 a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que determina, entre outros itens, como deve ser a reciclagem de equipamentos eletroeletrônicos. A operacionalização da lei está sendo discutida em Brasília, mas segundo especialistas não será tão fácil implantar um sistema de destinação correta à sucata de computadores, celulares e utilitários domésticos, por uma série de questões. A principal delas, segundo representantes da indústria e das distribuidoras de tecnologia, é a conscientização das pessoas.

A Política Nacional prevê obrigações que vão do consumidor ao fabricante ou importador, sendo que àquele cabe devolver o lixo eletrônico quando deixa de utilizá-lo. A primeira conscientização necessária, portanto, seria quanto à importância de dar a destinação correta ao que perdeu utilidade em casa ou na empresa.

A criação de pontos de coleta é uma das formas possíveis de recolher esse material do consumidor. Mas isso implica, no mínimo, em fazer com que as lojas tenham um depósito ou espaço físico semelhante para armazenar o que for entregue – o que pode parecer simples para grandes lojas, mas geraria custos difíceis de serem absorvidos por comerciantes menores, pontua Raphael Telles, consultor jurídico da Associação Brasileira de Distribuidores de Tecnologia da Informação (Abradisti). Além disso, outra dificuldade seria o que fazer com produtos comprados em lojas virtuais, cada vez mais comuns, ou adquiridos fora do País – legal ou ilegalmente.

Outra lógica possível seria a de que, no caso de equipamentos maiores, a loja que fosse entregar a unidade nova já recolhesse a velha. “Quase ninguém fica com duas geladeiras em casa, então no momento em que compra a nova o consumidor já pode pedir à loja que recolha o eletrodoméstico antigo”, exemplifica André Luis Saraiva, diretor de responsabilidade da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) e relator do Grupo Técnico Temático (GTT) que discute a questão em Brasília.

Uma vez recolhida a sucata eletrônica, outro problema se coloca: para quem enviar o material? Pelo que descreve o PNRS, ele deveria ser entregue da loja ao distribuidor, afirma Telles, mas aqui também seria necessário espaço de armazenamento, o que geraria alta de custos. “Além disso, seria preciso alguém para gerir esse material, quer um funcionário específico, quer um que vá assumir essa função, mas de qualquer maneira é um complicador para empresas de pequeno porte”, completa Wanderley Coelho Baptista, analista de políticas e indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Telles, da Abradisti, acredita que o que pode acontecer – e por isso a Associação não tem uma posição definida sobre como deve ser operacionalizada a Política Nacional – é as distribuidoras fazerem acordos individuais com as indústrias, de modo que, por exemplo, o lixo eletrônico seja encaminhado direto aos armazéns destas últimas. Ainda assim, outro problema se coloca: para quem enviar os produtos importados, fabricados fora do País?

Saraiva, da Abinee, pontua que deve-se ter um regime rígido e que iguale as importadoras e as fabricantes, para não gerar condições de competitividade diferentes para as duas. “Se a indústria nacional tiver esse custo de destinação da sucata eletrônica e a de fora do País não tiver, os produtos brasileiros serão mais caros, e aí como se vai convencer o consumidor a comprar o eletrônico feito aqui?”, levanta.

Há, ainda, uma questão fiscal, levantada pelos três especialistas: a da propriedade da sucata, que em alguns casos implica na chamada bitributação. Uma vez que existe uma obrigatoriedade legal de destinação correta, cada setor envolvido precisaria de um documento que atestasse o cumprimento de sua parte. Além disso, para transportar a sucata da loja até a distribuidora, por exemplo, é necessário nota fiscal, porque não se pode transportar produtos sem nota. Mas para emitir nota, é preciso pagar imposto – que já pagou quando comprou vendeu ao consumidor -, e é nesse ponto em que se tem bitributação: pagar imposto duas vezes sobre o mesmo produto, explica Telles. Ele ainda destaca que na verdade nenhum tipo de nota fiscal existente hoje cobre esse tipo de atividade.

Outro ponto, levantado por Saraiva, diz respeito às campanhas independentes já em curso. “Enquanto você tem supermercados dizendo ‘tragam seus produtos’, temos empresas que vão passar a ter meta de recolhimento, que não serão nunca batidas se houverem iniciativas isoladas”, avalia. Ele enfatiza que não é contra as campanhas, mas acredita que elas têm intenção mais de levar o consumidor ao ponto de venda do que de conscientizá-lo sobre a necessidade de dar destinação correta aos resíduos eletrônicos.

Infraestrutura nacional
Abinee e Abradisti acreditam, de acordo com seus representantes, que os legislativos estaduais e municipais deveriam esperar que a operacionalização da PNRS seja concluída antes de criarem determinações de como a coleta e a reciclagem devem ser feitas em cada local. “Se cada um dos mais de cinco mil municípios criar sua própria lei, será bem mais difícil organizar esse trabalho de forma coerente”, afirma Saraiva.

Baptista, da CNI, lembra que o território brasileiro é enorme, o que complica a criação de uma logística uniforme. Além da extensão em si, as peculiaridades das regiões são diferentes. “A forma como se comercializa, como se distribui, como se poderia recolher, e mesmo o tipo de equipamentos que são comprados são heterogêneos”, enumera. Além disso, a variedade de componentes da categoria de sucata eletrônica exige que se estabeleçam prioridades, acredita. “Eletroeletrônicos vão de pendrives a máquinas de lavar”, resume.

O analista da Confederação também ressalta que “o governo não pode implementar uma logística reversa que comprometa a competitividade, inserindo mais custos que vão refletir em um produto mais caro” ao consumidor final. “A indústria vai precisar de muito apoio governamental para que nós, consumidores, não paguemos a essa conta”, opina. Para ele, o processo deve incluir incentivos para aquisição de máquinas de reciclagem, barateamento dos processos e linhas de financiamento para desenvolvimento de tecnologias nacionais, entre outras.

A questão da capilaridade das usinas de reciclagem aparece neste ponto da discussão. “Imagine trazer a sucata eletrônica de 2 milhões de habitantes de Manaus (AM) para São Paulo, que é onde há indústrias para processar determinados componentes?”, ilustra Telles. Ele acredita que é necessário incentivar a criação de empresas do setor de reciclagem em diferentes regiões do país – o que, além de baratear o processo, economiza o meio ambiente à medida que evita a circulação de caminhões de transporte.

A importância da pesquisa e dos investimentos na área é ressaltada por Saraiva. Atualmente, por exemplo, o País não possui usinas de reciclagem de placas de circuito, que contém 17 metais entre preciosos e os usados para a indústria da computação, e o material precisa ser exportado para a Bélgica para ser recuperado. “Não faz sentido mandar a riqueza e o esforço da minha população para outro país e continuar sendo um exportador de commodities”, afirma.

“Não é o ouro e a prata: essas placas têm materiais que poderiam ser matéria-prima para indústrias nacionais de componentes”, exemplifica, lembrando que isso gera emprego e renda dentro das fronteiras verde-amarelas. “Em última instância, o investimento na reciclagem de eletroeletrônicos se concatena com o apoio à indústria de tecnologia de ponta, pois sem insumos não se consegue alavancar o setor”, conclui. Para Saraiva, as medidas de incentivo devem ser oferecidas pelo governo, em vez de solicitadas pela indústria.

Inspiração internacional
Para Saraiva, o ideal seria um modelo híbrido entre o que é feito no Japão e o que ocorre na Europa. No país asiático, os eletrônicos são recolhidos pelos correios e entregues em um grande centro, que reaproveita as peças ainda boas e remonta equipamentos. “Essas máquinas recuperadas são revendidas a um custo bem mais acessível, sendo a opção de quem quer adquirir o primeiro aparelho”, explica.

A sugestão se aplicaria ao Brasil porque, segundo o relator do GTT em Brasília, no País se tem uma cultura de doar ou vender os eletrônicos sem uso, em vez de simplesmente descartá-los. “O que está sendo descartado hoje foi produzido em 1999 com a intenção de durar cinco anos, e o brasileiro faz durar 11”, exemplifica. A parte que seria inspirada no modelo da Europa é a de criação de um programa que certificasse os produtos, de modo que o consumidor pudesse tomar uma decisão consciente.

Telles, que não participa das discussões na capital do País, opina que o único modelo que tem funcionado no mundo é o europeu, porque o consumidor paga a taxa de reciclagem no momento da compra. “Então se custa 900 e a taxa é 90, você vai pagar 990, e não existe a opção de não pagar”, exemplifica. Em termos de logística, ele diz que diferentes setores – como indústria e distribuidores – formam entidades responsáveis por lidar com a sucata que teria de ser manuseada por cada empresa separadamente, o que permite redução de custos e otimização de recursos.

Baptista, que também não faz parte do GTT, afirma que até onde acompanha as discussões é possível que os primeiros pilotos se foquem em grandes centros urbanos, especificamente nas doze cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. A justificativa é o volume maior de produção, a existência de alguma infraestrutura de reciclagem, além de gerar uma grande base de dados para que a operacionalização se dirija a outros municípios e estados.

Os dados do plano piloto, segundo Saraiva – que não confirma quais cidades serão escolhidas, embora provavelmente sejam grandes centros – servirão para se avaliar os gargalos e as necessidades que a implantação em todo o país terá. Para Telles, as informações também servirão para que se estabeleçam bases de negociação. “Hoje você conversa com a usina de reciclagem e ela tem faixas de preço de acordo com a quantidade de toneladas, mas não temos a menor ideia do volume que teremos”, opina.

A Abradisti, segundo Telles, teme pelas metas que serão criadas, pois acredita que podem ser quantitativas. “Em um momento inicial, é preciso educar o consumidor, porque não posso ir até a casa dele e tirar o eletrônico de lá”, ilustra, “então enquanto o consumidor não entregar, o setor não vai ter a quantidade para bater a meta, e isso pode gerar uma valorização da sucata, com as pessoas querendo vender o lixo eletrônico porque sabem que as empresas precisam atingir o especificado pelo governo”, conclui.

Além disso, Saraiva levanta que uma das ideias para o desenvolvimento da indústria é incentivar o uso de materiais reciclados no Brasil em produtos produzidos por aqui. “Nesse caso, será preciso convencer o consumidor de que um produto feito com material reciclado não é inferior”, exemplifica. O relator do GTT é ecoado pelos outros especialistas, que colocam a conscientização do consumidor sobre as várias etapas e possibilidades econômicas e ambientais da Política Nacional é um dos pontos centrais e essenciais para o sucesso do projeto.

Por DÉBORAH SALVES